Bagagem

Era uma tarde de sexta-feira, no mundo da menina o ponteiro do relógio se atrasava, no mundo real a aula estava a todo vapor. Sempre foi assim, dois mundos simultâneos e distintos, um idealizado outro necessário. Um mundo de vivências solitárias e desafiantes, outro mundo que só surgia quando ela se anestesiava das feridas reais. O segundo sempre foi seu predileto, apesar de seu efeito mertiolate, remediando dolorosamente as memórias da menina coruja que papeava pelos olhos o que a boca calava. O sinal da saída a aterrizou, guardou os cadernos em sua mochila de rodinha que deslizava pelo chão do pátio mais rápido que seu sorriso pela face. Era dia de reencontro, encanto e brincadeiras, entrou correndo na casa da avó com cheirinho de feijão fresco, jantou mais rápido que um foguete aos sons dos lembretes: “Tudo isso? Come devagar. Vai engordar!”. Lá estavam prontas para a viagem, a menina e sua bagagem abraçadas no degrau gelado de ardósia, no monólogo por dentro dos fios de cabelo pretos roteirizava as ruas de Moema. A mala de tecido áspero alertava que macio não seria esse capítulo, o zíper já perdia sua função tornou-se um amuleto – “vai e volta, abre e fecha” - ele foi, mas ele volta? Da sacada sua avó dizia: “Sobe! Espera aqui em cima!” - Ele já vai chegar! – respondeu sua inocência. “Vai e volta! Uau olha esse céu! Está ficando frio! Será que se perdeu? Estamos perdendo tempo...não vai dar tempo de fazer tudo que imaginei...” Anestesiou, cochilou em seu mundo paralelo. Foi acordada com um abraço e um par de olhos marejados que pareciam as águas do caribe. Era seu avô, acolhedor lhe entregando a notícia do esquecimento. - “Vem! Vamos pra dentro.” – disse o avô - “Ele não veio...” - murmurou engolindo o amargo da rejeição. - “Tem paçoca em cima da geladeira...” - Desconversou com a voz embargada. - “E Minha mãe já chegou? – indagou subindo as escadas Sentiu de novo a sensação de flutuação, andava no futuro,anestesiando o presente. O silêncio foi a resposta da sexta-feira...ausência. (Bianca Snotra)

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